Cerca de 10% dos agentes nomeados nos últimos três anos não concluíram curso. Mais de 500 recém-chamados também não têm treinamento
Centenas de policiais civis do Paraná estão atuando há anos nas delegacias do estado sem o mínimo treinamento exigido para a atividade. Eles foram nomeados para a função, mas não concluíram o curso de formação na Escola Superior da Polícia Civil (ESPC). Oficialmente, esses agentes poderiam apenas fazer serviços administrativos, dentro dos distritos. Mas, na prática, participam de operações e investigações.
Segundo a Polícia Civil, 429 policiais nomeados após 2011 não concluíram integralmente o treinamento – o equivalente a 10% do efetivo da corporação. Outros 521 agentes recém-chamados pelo governo nem sequer têm previsão de quando vão começar o curso. Juntos, os que ainda não concluíram a formação correspondem a um quinto do corpo da instituição.
Formação padrão da corporação também deve ser encurtada
O Sindicato dos Investigadores do Paraná (Sipol) informou que a Polícia Civil também deve encurtar a duração do curso de formação dos policiais. Os módulos passariam a somar 278 horas-aula e seriam complementados com aulas não presenciais (on-line). De acordo com a matriz curricular da Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp), a carga mínima indicada é se 600 horas-aula.
Crítica
“Daqui a pouco, vão querer fazer curso por telepatia. Da forma como os cursos vêm sendo feitos, à conta-gotas, não funciona”, disse o presidente do Sipol, Roberto Ramires.
O último curso realizado integralmente foi concluído em 2010. Na ocasião, os módulos somaram 880 horas-aula, que se estenderam ao longo de cinco meses e meio, de acordo com o sindicato. Desde então, os policiais nomeados participaram apenas de alguns módulos.
Na última semana, a Gazeta do Povo mostrou que a Polícia Civil enxugou a formação de delegados. Com a redução da carga – de 800 para 278 horas-aula – o Paraná passou a ter um dos cursos mais curtos do país. A corporação argumenta que a grade estava defasada e precisava de modernização.
Profissionais devem concluir curso em 12 meses
A Polícia Civil espera ter formado os 950 policiais sem treinamento dentro de 12 meses. A corporação informou que está definindo o calendário dos novos cursos e atribuiu o atraso ao “volume de contratações” feito para “suprir um déficit histórico que havia de policiais no Paraná”. “A ESPC está realizando cursos de formação de forma ininterrupta, buscando oferecer um treinamento completo a todos os policiais, da forma mais célere possível”, diz a instituição.
A corporação ressalta que os policiais que concluíram os módulos de uso legal de arma de fogo e de operação policial “estão habilitados a exercerem as funções de investigação propriamente ditas”. Somente após a conclusão integral do curso é que a Polícia Civil concede uma arma da instituição ao agente.
A falta de formação dos policiais expõe não só a precarização da preparação dos policiais, mas também a realidade dos delegados que lecionam na Escola Superior da Polícia Civil (ESPC). Os professores trabalham sem qualquer remuneração. “Vou por amor à minha instituição. Estamos dando aula de graça. Trabalho voluntário para o Estado. É mole?”, disse um delegado, professor da ESPC. Apesar de lecionarem aos novos policiais, os delegados dizem que continuam com suas atribuições normais, nos distritos e delegacias especializadas. “Eu tenho que dar aula, mas continuo dando conta do mesmo número de inquéritos. Não ganho nem um suporte”, reclamou outro delegado.
“Estamos trabalhando para fornecer formação completa a esses policiais o mais rápido possível, dentro das nossas condições”, garantiu o diretor da ESPC, delegado Luiz Fernando Artigas Júnior.
Módulos
Em regra, a formação está sendo feita aos poucos. Os novos policiais, na maioria dos casos, passam apenas pelos módulos de tiro e operação policial. Com isso, se habilitam a portar arma de fogo, recebem a carteira funcional e vão para as delegacias.
Lá, deveriam passar por uma espécie de estágio. Entretanto, acabam absorvidos pela rotina dos distritos. Sindicatos, policiais e delegados ouvidos pela Gazeta do Povo revelam que os agentes sem treinamento atuam como um policial formado: vão às ruas, fazem investigações, entram na escala de plantão. Alguns chegam a participar de operações que terminam com trocas de tiros com suspeitos.
“Eu só concluí o ‘miojão’ [jargão usado para designar os módulos de tiro e abordagem, em alusão à curta duração dos cursos]. Na delegacia, sou um ‘tira’ comum. Puxo plantão, vou pra rua. Só pedem pra eu evitar confronto [troca de tiros]”, contou um policial, que ingressou na corporação no fim de 2011.
Responsáveis pelos distritos, os delegados revelam sofrer pressão para aproveitar os policiais sem treinamento. “A ordem oficial é que eles [os policiais] não poderiam realizar trabalhos externos, mas a ordem extraoficial é que eles devem, sim, trabalhar. São computados como sendo servidores em exercício pleno, para todos os fins, inclusive para cobrar mais serviço das chefias pela alta cúpula [da Polícia Civil]”, disse um delegado da região de Curitiba.
Precarização
O Sindicato dos Investigadores do Paraná (Sipol) e o Sindicato das Classes Policiais Civis do Paraná (Sinclapol) dizem ter encaminhado ofícios ao governo do estado e à Polícia Civil, informando da situação irregular dos policiais sem treinamento. “Mandar um investigador sem formação para uma delegacia é precarizar a segurança pública”, disse o presidente do Sipol, Roberto Ramirez. “É uma situação completamente irregular”, definiu o presidente do Sinclapol, André Gutierrez.
Despreparo já resultou em tiroteio com morte
Além de não estarem preparados para a execução de trabalhos especializados – como o de investigação –, os agentes sem formação completa podem se ver envolvidos em situações com as quais não estão preparados para lidar. E, pelas particularidades do trabalho policial, as situações de risco não são raras. No dia 11 de maio, por exemplo, uma rebelião ocorrida na delegacia de Colombo terminou com a morte de um agente. O tiro teria sido disparado pelo investigador Diego Eleser Almeida, que não havia concluído o curso preparatório. Durante o motim, ele foi baleado de raspão.
“Segundo os informes, ele [Diego Almeida] estaria portando uma arma própria. Mas ele não poderia nem sequer estar na escala de plantão”, confirmou o presidente do Sindicato dos Investigadores do Paraná (Sipol), Roberto Ramirez. “Ele não foi treinado para lidar com aquela situação. O investigador foi uma vítima da precarização. O problema é que só se fala em treinamento quando acontece uma situação como essa”, completou.
Aprender fazendo
Um investigador ouvido pela reportagem diz que ficou por quase um ano apenas cuidando de presos da delegacia para onde ele foi destinado. “Me desmotivei total. Você entra querendo somar e te colocam pra ser carcereiro”, desabafou. Outro policial conta que, mesmo sem curso, foi colocado na linha de frente do distrito. “Como não tinha gente, eu tive que ir para a investigação. Aprendi fazendo, observando os colegas”, disse.
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